O cangaceiro, a donzela, o jagunço e a cobra

O cangaceiro, a donzela, o jagunço e a cobra

(a concluir)

Sertão nordestino, anos 1930. 
Um viajante solitário e seu jumento cruzam a aridez do sertão nordestino, rumo ao horizonte. Lá, céu e terra se fundem sob o sol escaldante de novembro.
Nosso viajante é um homem na casa dos 55 anos, de estatura mediana, com aparência frágil, de pele enrugada e tostada pelo sol forte. Mas sua constituição física disfarça o grande vigor e energia para as longas jornadas no lombo de seu inseparável jumento cinzento, o qual chama de Chico. Se os olhos são as janelas da alma, através dos seus, só se pode ver uma serenidade, aonde não parece caber nehum mal.
Traz consigo pouca coisa. Nas vestes simples destacam-se um gibão e um chapéu de couro para se proteger dos espinhos e galhos secos da caatinga. Uma esteira e uma coberta de lã para os pernoites, em sua maioria, tendo as estrelas como teto. No bornal carrega carne seca, tapioca e fumo de corda. No cantil, água fresca do último riacho que atravessou se caminho. Um saco que parece conter uma garrafa misteriosa, também faz parte da sua bagagem, além de uma viola afinada o acompanha nos casos que gosta de contar por onde passa.
Algumas léguas adiante, um pequeno povoado se desenha na paisagem. O viajante se detém por um instante, como que avaliando as possibilidades do lugar que vai conhecer.
Na placa, na entrada da cidade, se lê “Pequenina”. Não poderia haver nome mais apropriado. 
A distância permite divisar a igreja, caiada de um branco recém íntado, quase imaculado, com a torre do sino acima de todas as outras construções do lugar. A rua do pequeno comércio é onde se vê o maior movimento de gente. As casas simples dos moradores compõe um mosaico multicolorido, que faria empalidecer qualquer arco-íris depois da chuva. Alí deve ser a escola e acolá, a prefeitura. A praça e o coreto, as pessoas transitando sem pressa, cuidando de suas vidas, sem muito com o que se preocupar, sem nada a temer. Não há postes, nem fios. Nenhuma estrada importante, nenhum rio navegável e nenhuma ferrovia em léguas de distância. Sem telefone, sem telégrafo, sem energia elétrica. Os pequeninenses estão isolados do mundo, há dias de distância de qualquer vestígio de civilização.
Exausto e com sede, o jumento atende prontamente os calcanhares em sua barriga que o ordenam a seguir a ladeira abaixo, confiante do merecido repouso e água fresca que encontrará na sombra generosa de alguma árvore.
Todos os raros forasteiros que adentram Pequenina costumam ter uma passagem discreta. Caixeiros viajantes, andarilhos, o homem do correio. São eles os portadores de boas ou más notícias do mundo exterior, tão alheio aos habitantes do lugarejo. O último que passou por alí disse que era bom cada um separar uns cobres e a garrafas de cachaça para dar ao bando de um tal de Lampião,que se dizia governador do sertão. Mas nunca levavam essas estórias muito a sério, pois jamais esperam por alguém que pudesse causar um desequilíbrio substancial à rotina por eles tão prezada e preservada ao longo dos anos. 
Amarrado o jumento à sombra, nosso viajante se posiciona no meio da praça. Do saco preto, saca pequenos frascos de água de cheiro, que distribui às mulheres que passam. Às crianças, pequenos e deliciosos cubos de rapadura. Aos homens, miniaturas de garrafas de cahaça de alambique. Todos distribuídos de graça, a quem seus braços alcancem. A princípio, as pessoas desconfiam de tanta generosidade, mas aos poucos, aceitam e aprovam os inesperados agrados.
Passa a alça da viola em volta do pescoço, afina com destreza as doze cordas do instrumento. Uma pequena multidão, levando-se em conta as modestas dimensões demográficas de Pequenina, se aglomera ao redor desse forasteiro. Em verso, ele saúda e se apresenta aos atentos pequeninenses. Deixe-mos com ele a palavra, por enquanto.

Boa tarde, Pequenina!
Bendita comunidade!
Corre solta sua fama,
De grande hospitalidade. 
Berço de homem valente, 
Terra de mulher decente
Da mais pura qualidade.

Eu já vi gente bonita,
Por esse sertão afora. 
Porém sem comparação
Com o que eu vejo agora
De Exu a Juazeiro,
Cariri a Limoeiro,
A beleza é cá que mora.
Sou Custódio Severino, 
Quero me apresentar.
Vi na vida muita coisa
Que hoje posso contar.
Experiente, calejado,
No sertão eu fui criado.
Tenho é casos pra narrar.

O que conto, acreditem,
Nada tem de ficção.
É verdade verdadeira,
Digo com convicção.
Diminuo nem aumento,
O que falo não invento,
Não vem da imaginação.

—Podem se chegar, minha gente. Peço que vosmecês se acomodem em volta para que todos possam escutar o caso que vou contar, em verso e prosa. As crianças na frente, as damas e os cavalheiros ao fundo. Pois bem, vamos começar. Há mais surpresas no final, que ninguém vá embora, continuemos!”

O galo canta cedo,
O trabalho é divertido.
E lá tem doce de côco
De deixar queixo doído.
Lá da leite, dá mandioca,
Milho de fazer pipoca,
Na Fazenda Grão Moído.

Lá no alto de Alagoas, 
Muitas léguas de lonjura,
Crianças se divertiam
Num cenário de pintura.
E por toda vizinhança,
A vida passava mansa,
Feito quadro na moldura.

Coronel Sebastião,
Homem rude, porém justo.
Hoje está recompensado,
Com patrimônio robusto.
Cedo foi arar a roça,
Foi condutor de carroça,
Bem de vida à muito custo.

Mas o seu grande xodó,
Sua riqueza sem igual,
Prometida a engenheiro,
Bom moço da capital
É sua filha Margarida,
Pelos deuses protegida,
Herdeira do seu capital.

—Margarida era filha única do coronel, rodeada de todos os minos, diziam que era a cara da mãe, falecida quando a menina ainda era criança. Não havia pedido seu que o coronel não atendesse, não havia doce, boneca ou vestido que não mandasse buscar onde quer que fosse para agradar sua amada garotinha. Pitar seu cachimbo no alpendre vendo a menina correr pelos gramados verdinhos da fazenda era uma das maiores alegrias do coronel. 

Mas tanta prosperidade
Logo desperta cobiça.
Grão Moído é comentada
Até na hora da missa.
Cangaceiros lhe põe alvo,
Ninguém estará a salvo,
Quem viver, peça justiça.

O bando de Barrabás
Invade cedo a fazenda.
Quem resiste é esmagado 
Feito cana na moenda.
Sem respeito à autoridade,
Agem com perversidade,
O medo é fonte de renda.

Em matéria de baderna
O bando é especialista.
Cada um pega o que pode
Até completar sua lista.
Januário, o cangaceiro
Agarra a donzela primeiro.
É sua parte na conquista.

—E assim Grão Moído vive um pesadelo, minha gente. O bando de cangaceiros ateis fogo nos armazéns, se farta de tudo que pode roubar da casa grande, mata animais e trata com violência os trabalhadores da fazenda. Coronel é amarrado a um poste e vê sua filha se debater nos braços firmes do cangaceiro Januário. O homem não se cala diante de tamanho desaforo.

Atacaste minha casa 
Feito uma ave de rapina.
Não te atrevas coisa ruim
A bulinar minha menina.
Leve o vinho, leve o bode, 
Mas respeite o meu bigode.
A minha ira é assassina!”

 Minha filha, aguente firme,
Que papai vai te buscar.
E aquele que te leva,
Eu também vou encontrar,
Pode até sumir no mundo,
No buraco mais profundo,
Eu o encontro pra capar!

—Não custava ao cangaceiro sangrar Sebastião até a morte, mas se limita a lhe responder a ameaça, com firmeza e até com certa admiração.

Coronel, tu és ousado
E eu respeito muito isso.
És altivo na derrota,
Sem jamais ser submisso.
Vou poupar a tua vida,
Mas não deixo Margarida, 
Nem com força de feitiço.

—Coronel é abandonado ali, ao choro, ouvindo os gritos de Margarida diminuirem na distância, mato a dentro

A menina se debate 
Feito uma gata do mato.
Ela é levada a força,
Porém sem maior maltrato.
Januário toma soco,
Leva tapa e não dá troco,
Lhe perdoa o desacato. 

O bando vai satisfeito
Com o fruto da pilhagem,
O rastro que ele deixa
É a mais pura imagem:
De uma violência insana
De uma farra desumana,
Para obter vantagem

Custódio faz uma breve pausa para tomara água. As pessoas se se comodam melhor para acompanhar sua narrativa. Alguns se sentam na grama, as mulheres abrem as sombrinhas, o pipoqueiro se apressa em atender os fregueses. as crianças deixam de brincar para prestar atenção.  De onde viera Januário, o cangaceiro que raptou a indefesa donzela? Os próximos versos irão lhes revelar.

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