A mesa 7

A mesa 7

(a concluir)

Gávea, Rio de Janeiro, 1976.

– Senhor, senhor! Alguém, chame um médico! Ele não está respirando!
O homem rodeado por curiosos anônimos, caído no chão frio de granito do bar, cianótico e com expressão de terror nos olhos, acabara de sofrer um infarto fulminante. Seu nome é Jonas. Jonas... Jonas de quê? De onde? Irrelevante. Mas supondo que alguém se desse ao trabalho de perguntar por detalhes daquele cujo corpo ali jaz, nada encontraria de marcante, de especial ou de incomum em sua biografia. A não ser a sequência improvável de eventos que culminou no cessar abrupto das batidas do seu coração. Talvez as artérias coronárias, comprometidas depois de tantos anos da combinação de cigarro, álcool e sedentarismo, tenham colaborado para esse desfecho, mas com certeza não foram o fator determinante. Mas para entender melhor o final tão comum e ao mesmo tempo tão incomum de Jonas, como ficará mais claro adiante, temos que voltar no tempo. Trinta e três anos antes, para ser mais exato.

Eliseu.

Baía de Guanabara, 2 de julho de 1944.

O navio norte-americano de transporte de tropas General Mann aguarda para zarpar rumo a Nápoles, na Itália, assim que os 5.075 soldados do primeiro escalão da recém formada Força Expedicionária Brasileira estejam a bordo. Bigode aparado, uniforme engomado, a passos firmes se aproxima Eliseu, soldado do 1º Regimento de Infantaria. Carrega nos ombros, além do equipamento que lhe cabe, a responsabilidade que lhe foi dada pelo povo brasileiro de fazer o melhor pelo seu país, em combate, na Europa.
Detém o passo ao atingir o alto da rampa de embarque, mas não olha para trás. Já estava desapegado de tudo. Seu único vínculo com a terra firme era Laura, sua amante. Não tem dúvidas de que ela cumprirá o pacto que firmaram na despedida.
Ao lado dos colegas, já em seus aposentos, ouve com olhar meio perdido as palavras de apoio e incentivo do próprio presidente Getúlio Vargas, que declarara guerra às forças do Eixo, após submarinos alemães afundarem navios na costa brasileira. Mas as palavras de Getúlio não tocaram fundo em Eliseu, nem alteraram o seu moral. Apenas estava levado pelos acontecimentos, que levariam a um desfecho por ele já conhecido previamente.

A vidente

Morro da Providência, Rio de Janeiro.

Eliseu e sua amásia Laura não tomavam nenhuma decisão importante na vida sem antes consultar Mãe Galdina. Dentre outras coisas, queriam saber sobre o seu futuro juntos, pois pretendiam se casar e ter filhos.
Vidente respeitada na comunidade, a negra obesa, de baixa estatura e de cabelos brancos como algodão se esforçava insistentemente, mas não conseguia enxergar em seus búzios, o futuro para os dois, o que não era um bom sinal. Envolta numa névoa de incenso e da fumaça de seu charuto, ela pediu licença ao casal e mergulhou num transe profundo, revirando os olhos, tremendo e transpirando muito. De repente, de sua boca carente de dentes, emergiu uma gargalhada estridente e debochada. Quase se podia perceber a desaprovação nas feições das imagens de barro e madeira das divindades que ornavam as paredes do barraco.
— ah, como é bom visitá o mundo dos vivo!
— Mãe Galdina?– pergunta Laura, preocupada.
— Galdina aqui não, minha fia. A véia mi chamou pra ler esses búzio e dá uma notiça procêis. Cadê Menininho? Menininho! Apareça, moleque!
Menininho era o apelido de um garoto branco que tinha sido expulso de casa por seus pais ainda adolescente quando descobriram sua homossexualidade. Mão Galdina o acolheu e ele é seu assistente para todos os momentos.
— Se apresente, por favor e nos diga: quem é que está falando e que notícia é essa? — pergunta Eliseu.
— Não importa quem sou, o que importa é o que tenho pra te dizer e não me apressa, que eu tô aqui pra fazer um favor.
— Pronto, cheguei, quem me grita e me faz correr assim? — responde o franzino e ofegante Menininho, abanando a mão em frente o rosto para se refrescar.
— Menininho, onde é que tu tava? Me passa o marafo, que eu tô com sede e me acende um charuto novo que esse só no toco.
De mãos dadas e apreenssivo, o casal vê quase meia garrafa de cachaça ser tomada no gargalo, de uma só vez, pela misteriosa entidade.
— Qual é a notícia que tem para nós?– pergunta a já aflita Laura.
— Seu homem é bonito, menina. Se o corpo dessa véia aguentasse, ia passar a noite toda dançando com ele, só pra ver o ciúme na tua cara.
— Não brinca com coisa séria! É Pombagira, não é? E vê se não judia o corpo de Mãe Galdina, ela já é idosa, viu?
— Hahahaha, já baixei muito nessa véia, desde quando era mocinha, deixa que eu me entendo com ela. Agora faz meu gosto, muié: me dá teu batom, teu perfume e uma escova de cabelo. Moço, tira a corrente de ouro dela e coloca no meu pescoço e Menininho, me acha um espelho. Se eu gostar do que enxergar, eu conto o que eu sei.
Atendidos os pedidos da mulher, ela dá fim a quase toda a cachaça da garrafa, como se fosse apenas caldo de cana. A aflição só aumenta.
— Agora sim, tô bunita! Óia, o que as pedra me diz não é bom, mas vou direto ao assunto: você vai morrer, Eliseu. E não há de ser morte morrida. É de morte matada. E vai ser longe daqui, no estrangeiro. E também não há de tardar muito, não. Se prepara pro pior, porque o seu destino já tá amarrado e não há nada que desate esse nó.
Eliseu se petrifica, com os olhos marejados, se esforça pra manter uma postura de coragem diante do que sabe ser inevitável. Laura se desespera aos prantos e intervém:
— Tem que ter um jeito. Eliseu não está pronto pra morrer e eu não vivo sem ele. Ajude, por favor!
— Se o amor docêis for grande mesmo, pode ter um jeito...
— O quê a gente tem que fazer?
— Meu trabaio era só dá a notiça. A véia tá pedindo pra voltar pra esse corpo pelancudo dela. Sorte que ela gosta docêis. Ela sabe o que tem que ser feito, pergunta pra ela. Menininho, prepara um café amargo pra Galdina que ela vai voltar num fogo só! Inté a vista, hahahahaha!

Frente apenina

Monte Castelo, 28 de novembro de 1944.

Segunda investida dos aliados para a tomada de Monte Castelo. Terreno íngreme, lama, frio, chuva, templo nublado. Sem possibilidade de apoio aéreo, as condições adversas somadas à determinação e ao poder de fogo da 232ª Divisão de Infantaria alemã em defender sua posição, tornavam a tomada do monte pelos pracinhas brasileiros e soldados americanos, uma tarefa penosa e difícil, resultando em baixas expressivas. Às 9h45 ecoou na cadeia de comando a ordem para que o 2º e 3º batalhões do 1º regimento avançassem e capturassem casamatas alemãs terreno acima, assegurando o acesso pelo flanco esquerdo do monte. Mas a movimentação denunciou a posição dos soldados a curta distância do objetivo, dando início a fogo initerrupto de ambos os lados. Em meio ao inferno que se tornou aquela porção do monte, com balas de fuzil e metralhadora zunindo por todos os lados, uma granada cruza o espaço para explodir a poucos metros de Eliseu. Um estilhaço fumegante lhe perfura o fígado, rompendo a veia porta, causando uma hemorragia incontrolável. Dois companheiros perdem a vida instantaneamente e mais dois são mutilados. Eliseu retoma a consciência por alguns instantes, o suficiente para ver um cabo pressionar o seu ferimento com um pano, na tentativa vã de estancar-lhe o sangramento, enquanto o médico, que pouco pode fazer, lhe ministra uma dose de morfina para que suporte a dor dilacerante do ferimento. Mas não houve tempo sequer para a droga fazer efeito. Eliseu não chorou, não clamou pela vida, nem lamentou sua sorte enquanto seu sangue se esvaia e tingia de vermelho a lama ao redor. Com o último pensamento em Laura, suas pupilas se dilatam, acompanhadas de seu último suspiro. Seu destino em vida, conforme previsto pela vidente, estava cumprido.

Correio Carioca

Página policial, 28 de novembro de 1944.

“Corpo de mulher encontrado boiando na baía de Guanabara”
Pescadores, ao sair para trabalhar, encontraram boiando próximo à praia, em Icaraí, Niterói, o corpo em estado de decomposição de uma mulher morena, cerca de trinta anos trajando vestido branco. 
A polícia foi chamada imediatamente ao local. Constatou-se que a têmpora da vítima exibia um ferimento característico de arma de fogo e um revólver calibre 32 estava preso à sua mão. Segundo o delegado de plantão, todos os indícios não deixam dúvida de se tratar de suicídio.” 
Não foram encontrados no local documentos que posibilitassem a identificação da mulher.
Até o fechamento dessa edição não tinham sido localizadas testemunhas do ocorrido, nem familiares da desafortunada mulher. 
Segundo Dalvanira, moradora há mais de trinta anos na comunidade e visivelmente impressionada com o acontecido, o local costuma ser pacato e tranquilo, sem ocorrências desse tipo. 
Recolhido ao Instituto Médico Legal, onde passou por procedimento de autópsia, o corpo aguarda por reconhecimento.”

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